Você não pode acessar completamente o outro, porque não há como compreender ele totalmente, se fizéssemos isso, ignoraríamos a sua subjetividade.
Por: Lianna Arraes
Muito antes da escrita ser desenvolvida o diálogo já se fazia presente em meio a sociedade. Entretanto, com o passar dos anos, se evidencia um monologismo das comunidades; estamos mais conectados e trocando mensagens, porém sendo compreendidos bem menos. Estaríamos então falando sozinhos?
A socióloga pela Universidade Federal do Maranhão e mestranda em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Natalia Mendes Teixeira explica por meio da sua pesquisa “O Diálogo Hermenêutico Na Era Técnico – Científica: interlocuções entre Zygmunt Bauman e Hans-Georg Gadamer” que sempre haverá uma forma de entendimento entre os seres racionais. O diálogo hermenêutico pode ter se enfraquecido, se transformado na era técnico-científica. Mas não está impossibilitado, pois, o homem é o único ser que possui uma linguagem e pensamento, não podendo se desfazer delas. Sendo assim, a capacidade para o diálogo sempre poderá ser desenvolvida.
Dentro desse contexto se percebe o diálogo como parte central para realização da experiência hermenêutica. E o que é Hermenêutica? Como essa ciência vem sobrevivendo em uma era cada vez mais tecnológica? Quer mais detalhes? Confira na entrevista.
O que levou uma socióloga a estudar filosofia?
Na graduação eu estudava sociologia, a pistolagem como fenômeno social, mas dentro dessa área não via uma abertura tão grande para compreender o indivíduo enquanto ser único. Enquanto que na filosofia eu podia ouvir a voz do ser humano sozinho, solitário, que é o que todos nós somos. Por isso não tive medo de fazer um currículo de certa maneira “costurado” em áreas distintas e interdisciplinares.
Por que você acha importante estudar hermenêutica?
Vivemos em uma sociedade de multidão, não conseguimos ouvir o outro, e a hermenêutica é uma prática de alteridade, por se pôr no lugar do outro e ouvir a partir do outro. É importante estudar hermenêutica por dois aspectos: primeiro, enquanto ciência, porque atravessa várias áreas do conhecimento; e enquanto forma de vida, porque é uma maneira de conseguir se relacionar e lidar com o outro, sem que você ouça mais a si do que o outro dentro de um diálogo. A hermenêutica gadameriana revoluciona porque antes de dizer como compreender tudo, ela denuncia que não é possível tudo compreender.
*Hermenêutica – é um ramo da filosofia que estuda a teoria da interpretação. A hermenêutica moderna ou contemporânea engloba não somente textos escritos, mas também tudo que há no processo interpretativo. Isso inclui formas verbais e não verbais de comunicação.
*Hermenêutica Gadameriana – é a hermenêutica filosófica referente à teoria do conhecimento de Hans-Georg Gadamer, desenvolvida em sua obra Verdade e Método
*Alteridade – a condição de ser outro. O vocábulo alter refere-se ao “outro” na perspectiva do “eu”. O conceito de alteridade é usado em sentido filosófico para evocar o descobrimento da concepção do mundo e dos interesses de um “outro”.
Qual foi o fator que despertou em você interesse para fazer essa pesquisa?
Em alguns momento da vida acadêmica produzimos mais por obrigação do que por intuição. Eu tinha que produzir um artigo final de uma disciplina sobre Gadamer e hermenêutica, então aliei sociologia contemporânea com filosofia hermenêutica, a teoria do Hans-Georg Gadamer com os escritos de Zygmunt Bauman e no final obtive um bom produto.
*Hans-Georg Gadamer – foi um filósofo alemão considerado como um dos maiores expoentes da hermenêutica filosófica.
*Zygmunt Bauman – foi um sociólogo, pensador, professor e escritor polonês, com destaque na sociedade contemporânea. Criador da expressão “Modernidade Líquida”
Qual a importância da sua pesquisa para a sociedade?
Ela é importante inclusive para a área de comunicação, porque os jornalistas quando entrevistam uma personalidade acabam concentrados mais no que querem ouvir ou, no que querem dizer através do que a pessoa está falando. Nesse contexto, você não para para ouvir o outro, e esse é um dos principais problemas de hermenêutica. O que é a hermenêutica? É saber interpretar, ouvir, tanto o outro, como o texto. A teoria gadameriana mostra que temos que sair do nosso universo de diálogo e linguagem para tentar acessar o universo do outro. Gadamer coloca isso como não sendo possível completamente, porque caso contrário, não seríamos indivíduos únicos, com características próprias.
Outra importância dessa pesquisa é a questão de atentar sobre o fato de que estamos cada vez mais ouvindo o outro a partir da nossa perspectiva e não da dele, ainda mais, dentro da era que eu coloco como técnico – científica, porque o técnico é essa era dos smartphones, que deveria ser uma era de comunicação. E coloco como científica, porque é uma era de muita inovação científica.
Em seu artigo você cita que a tecnologia estaria tornando o diálogo monológico. Como você percebe isso cotidianamente?
Percebo no uso dos emojis, por exemplo, você ao invés de responder com uma frase, usa um coração; algo que te permita fugir de um diálogo real com o outro. Um outro ponto é que estamos mais conectados, globalizados, isso dá a impressão de que estamos todos de mãos dadas ao redor do globo, mas essa não é a realidade.
Temos facilidade de acessar o outro, por meio de um aceite no FACEBOOK posso construir um relacionamento, ao mesmo tempo em um clique eu posso excluir alguém da minha vida. Os laços estão cada vez mais fragilizados. Podemos estar falando mais, porém conversando cada vez mais sozinhos. Com todo acesso à informação e à tecnologia, surge o desencaixe, que Giddens referencia como “deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço.” Ou seja, podemos estar próximos e cada vez mais distantes, pois a facilidade em conectar-se é diretamente proporcional à possibilidade de desligar-se do outro.
Temos priorizado relações virtuais às relações de corpo presente, será que isso não traz uma certa solidão? Achamos que com o celular não estamos sozinho, entretanto percebemos que quando estamos com outras pessoas corpo a corpo, geramos um processo de isolamento e distanciamento do corpo do outro, do estar presente para poder estar online. Então, isso pode gerar sim, um certo distanciamento e uma monologização do diálogo.
*Giddens (1991, p. 29) – GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. Tradução de Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991.
Esse estado de solidão é uma tendência do homem desde seu surgimento, ou, algo recorrente apenas a modernidade?
Acredito que essa solidão se intensificou. Olha a taxa de depressão e compare com o início do século XX ou com tribos indígenas. Eu acredito que existe uma diferença entre solitude e solidão. A solitude é essencial à vida humana, aquele seu momento sozinho, de interiorização e reflexão. A solidão é quando não estabelecemos laços cotidianos suficientes.
Um dos significados mais sucintos de diálogo é: interação entre dois ou mais indivíduos. Na sua pesquisa você coloca o questionamento de Gadamer sobre o processo de monologização crescente no comportamento humano. Tendo em vista isso, o diálogo ao passar por esse processo monológico, pode ainda sim ser chamado propriamente de diálogo?
Gadamer considera que é possível ter um diálogo hermenêutico coerente sem estar necessariamente de corpo presente. E isso depende de como o ouvinte se coloca dentro do diálogo, se está apenas esperando que o outro fale o que ele já pensa, ou, se ele consegue entrar em um raciocínio de linguagem, em que compreenda e não apenas entenda. Nesse contexto, Georg Simmel cita a atitude blasé – “um mecanismo psicológico que desenvolvemos para lidar com a quantidade e intensidade dos estímulos exteriores que a vida na metrópole e nas cidades modernas nos provoca.” Ou seja, recebemos tantos estímulos, que o nosso psicológico seleciona o que vamos dar devida atenção. O diálogo hermenêutico é possível, mas exige maior esforço de compreensão. Os variados estímulos externos impedem o exercício da alteridade e permitem o travamento desse diálogo. O encontro de duas pessoas pelo diálogo é uma troca de experiências mediada por duas perspectivas. Elas estão no mesmo mundo, mas não postas da mesma forma e, por isso, não possuem a mesma visão. É como Gadamer coloca, o diálogo com o outro ainda que se constitua em um atitude de desaprovação ou compreensão, é uma forma de expandir nossa individualidade.
Ao falar sobre fusão de horizontes na sua pesquisa você coloca a experiência hermenêutica como uma abertura para o outro. Você consegue perceber essa abertura dentro da nossa sociedade?
Na ciência essa abertura é essencial. Na prática, estamos cada vez menos incapacitados para fundir o horizonte com o outro. É um processo difícil, não paramos para pensar no que o outro está sentindo, porque não nos interessa, ninguém está se importando com a perspectiva que temos do mundo. Isso casa muito com o tempo atual. Ano passado o Dicionário Oxford selecionou ‘pós – verdade’ como palavra do ano, ou seja, não existe uma única verdade, cada um tem uma crença distinta que precisa ser respeitada e isso gera uma série de confrontos de ideias.
*Dicionário Oxford – todos os anos, a editora de dicionários da instituição britânica elege a palavra que, naqueles meses, atraiu um grande interesse. As palavras candidatas ao prêmio são debatidas por um júri, que, segundo a instituição escolhe o termo vencedor com base no “potencial duradouro” e na “significância cultural”.
*Pós – verdade – um substantivo que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais.
Gadamer entende a incapacidade para o diálogo como uma deficiência social generalizada em determinado tempo histórico. O que motiva essa incapacidade no nosso tempo histórico?
Na era da comunicação o diálogo está frágil, todos os autores que trago concordam que não existiu um tempo em que a comunicação estivesse tão expandida e o diálogo tão fragilizado, justamente por conta de todos os percalços que o nosso tempo vive. Nesse contexto cabe a Modernidade Líquida de Bauman; porque no medievo, por exemplo, tínhamos uma sociedade sólida, já na pós modernidade tudo é muito líquido, são várias denominações de igrejas, desdobramentos do Estado, tudo pode ser rompido a qualquer momento. Ou seja, se antes vivíamos o tempo da solidez, hoje, para Bauman, vivemos o tempo da liquidez.
* Modernidade Líquida – em suas obras Bauman cunha o termo “modernidade líquida” para tratar da fluidez das relações em nosso mundo contemporâneo. O conceito de modernidade líquida refere-se ao conjunto de relações e dinâmicas que se apresentam em nosso meio contemporâneo e que se diferenciam das que se estabeleceram no que Bauman chama de “modernidade sólida” pela sua fluidez e volatilidade.
Como seria uma sociedade em que todos praticassem o diálogo hermenêutico?
Seria uma sociedade chata, porque é importante enxergar o diálogo hermenêutico como um desafio não só para a ciência, mas como um todo, e como essencial para qualquer área de conhecimento.
Tem alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
É importante compreender que Gadamer destaca três formas de diálogo:
O entendimento do Tu como objeto da ciência – é quando temos a tendência a tipificar as pessoas, usando a pessoas como meio para o nosso fim. Fazemos uma caracterização egoísta do outro. Você converte o outro em objeto de análise e o tipifica, retirando toda subjetividade do sujeito.
Compreender o outro a partir da minha posição – ocorre quando eu penso que compreendo o outro melhor do que ele mesmo. Quem domina esse processo é aquele que está ouvindo. O outro passa a ser uma projeção do que eu penso.
E por último, a forma mais pura do diálogo hermenêutico – que exige a tentativa de suspensão dos meus preconceitos. Eu penso saber coisas sobre o outro e seu universo, mas eu suspendo os meus conceitos para tentar compreendê–lo. Isso seria a experiência hermenêutica na sua melhor forma. Você não pode acessar completamente o outro, porque não há como compreender ele totalmente, se fizéssemos isso, ignoraríamos a sua subjetividade. Buscar compreender inteiramente o outro é uma tentativa de enquadrá-lo em estruturas que estão mais no pensamento que na realidade. Ao mesmo tempo, o intérprete precisa estar consciente que a compreensão pura, sem nenhum pressuposto não é possível, isto é, reconstruir objetivamente a mentalidade e o universo de visão do outro é vedado ao hermeneuta.
*Hermeneuta – a pessoa que se especializou na leitura e na interpretação de livros sagrados e antigos, geralmente de teor religioso ou filosófico; quem se especializou em hermenêutica.